domingo, 25 de outubro de 2009

Estadolatria versus democracia

JORNAL ESTADO DE S. PAULO
A21 ESPAÇO ABERTO SÁBADO, 17 DE OUTUBRO DE 2009

Estadolatria versus democracia

Mario César Flores Almirante de esquadra (reformado)



Do absolutismo português à democracia de massa deste início de século, no Brasil sempre foi parâmetro cultural o pretenso direito de esperar o apoio abrangente, se não a dádiva do Estado - da mão provedora, do protecionismo e emprego público à caridade assistencialista. Vivemos como rotina a sujeição da cidadania ao Estado (à estadania) e sempre admitimos que o progresso depende menos do esforço e sacrifício da sociedade e mais, ou até essencialmente, da iniciativa e de medidas do Estado.

Essa lógica leviatã é refletida na fantasia ufanista da grandeza nacional espontânea em razão da extensão territorial e dos recursos naturais do País. Grandeza, na verdade, virtual, cuja transformação em riqueza útil ao povo depende da correta dimensão da presença do Estado na vida nacional e da competência, da criatividade, do investimento e muito trabalho da sociedade ingredientes do excelente desenvolvimento dos Estados Unidos no século 19, de país colonial a primeira potência do mundo, em que o Estado era mais estímulo e regulador do que agente direto: ajudava,não atrapalhava.Se território e natureza fossem riqueza em SI, Suíça, Holanda e Bélgica seriam pobres; Luxemburgo, paupérrimo ... As manifestações de vaidade poética do Hino Nacional "gigante pela própria natureza", "deitado eternamente em berço esplêndido" e "impávido colosso" - refletem esse ufanismo inebriante. Faltam-lhes um complemento sobre o esforço necessário para que o "impávido colosso" se levante do "berço esplendido" e transforme "a própria natureza" em riqueza, para que o Brasil deixe de ser "o país do futuro", assim classificado há 70 anos por Stefan Zweig, passando ao patamar a que de fato o credencia seu potencial.

Existem na sociedade brasileira as condições necessárias à odisseia da grande transformação, haja vista o razoável sucesso de setores de nossa economia  é bem verdade que, mesmo eles, em geral fãs das muletas estatais, o cofre provedor e a alfândega protetora ... Mas ainda falta muito para engajá-la toda na reorientação da confortável ideia de grandeza corno fortuna natural ou propicIada pela mágica estatal, para a efetiva construção nacional. E isso não será fácil enquanto parte ponderável do caráter coletivo continuar dando preferência à expectativa da felicidade impulsionada pelo Estado sobrenatural do conceito expresso há quase 200 anos por Fréderic Bastiat: "O Estado é a grande ficção por meio da qual todo mundo se esforça para viver à custa de todo mundo." Todo mundo mesmo: dos políticos e apaniguados que se sentem com direito ao patrimonial  clientelismo do butim eleitoral, dos segmentos empresariais e seu trabalho associado, apoiados em financiamentos públicos, protecionismo e renúncias fiscais, dos servidores públicos que se creem credenciados às benesses de sócios preferenciais do Estado aos conformados consumidores de assistencialismo.

Tampouco será fácil enquanto grande parte da sociedade brasileira continuar aceitando, satisfeita, a euforia das ilusões, disseminada pela propaganda narcótica enaltecedora do estatismo salvacionista, que se vale de fatos positivos (entre outros, na moda hoje o petróleo do pré-sal, por muito tempo ainda riqueza virtual do "gigante pela própria natureza" ... ), metáforas fantasiosas e afirmações grandiloquentes para dissimular as atribulações que castigam o País: a preocupante involução aética da política, cujos efeitos permeiam tudo o mais, a iniquidade social e a exclusão conformada pelas bolsas disso e daquilo, o precário, quadro da educação e da saúde ( com gente morrendo nos corredores de hospitais públicos  o que não constrange a previsão de obras grandiosas para eventos esportivos internacionais que deixarão felizes empreiteiras e afins ... ), o desenfreado desrespeito à lei, do delito trivial à violência e criminalidade epidêmicas, estradas destruídas, portos ineficientes, regime carcerário desumano, Judiciário de lentidão proporcional à sua singularidade no universo salarial brasileiro, Legislativo desacreditado pela semiparalisia e por práticas de (eu¬femismo delicado) discutível virtude ... dezenas de deficiências que afrontam a euforia.

Aqui, como em qualquer parte do mundo, não é seguro afirmar que a saga política seja indefinidamente imune à combinação das deficiências do Estado no desempenho de suas responsabilidades com a fé fanática no Estado e a abdicação da cidadania ao Estado, seja imune à frustração psicopolítica do caráter coletivo, propenso à dádiva do "impávido colosso" e do gigantismo "pela própria natureza", ao êxtase do carnaval e feriadão, às idéias paradisíacas de bem-estar natural (da redução da jornada de trabalho, que o "impávido colosso" mágico viabilizaria sem perda de competitividade e sem custo para o consumidor ... ), a que a euforia ilusória aporta seu alento anestésico.

Não há hoje clima para regimes ao estilo século 20. Mas não se pode afirmar idêntica implausibilidade para o salvacionismo messiâniaco travestido de legalidade eleitoral-democrática, sob lideranças carismático-sebastianistas hábeis na fórmula romana "pão e circo": o pão assistencialista e o circo do oba-oba eufórico, hoje muito pré-salgado e agora também olímpico, a que a mídia cooptada pela propaganda aporta sua prestidigitação, em especial a TV, cuja imagem dispensa o raciocínio crítico. Tudo no figurino populista-estatista que parece estar voltando à América do Sul, a reboque da Venezuela, após 25 anos de recesso.

Os autoritarismos, da esquerda à direita, sempre estiveram afinados com o estatismo exacerbado e a abdicação da cidadania ao Estado, ambos inconciliáveis com a democracia plena. Até porque, se o Estado é pretendido como provedor onipresente, deve caber-lhe naturalmente a autoridade correspondente uma equação histórica de que o Brasil aparentemente não está livre.


• Tenho a pretensão que CIDADÃOS  e políticos sérios (se os temos) tenham acesso a este texto visto que na maioria dos lugares se lê a parte esportiva, social, econômica e policial e no resto o jornal serve apenas de “status” de assinante.
Não leitores.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Qual a principal função do ENEM?

Qual a principal função do ENEM?
        Opiniões publicadas na Revista Pátio Ano XII Nº 46 Maio/Jul 2008

• PAULO RENATO SOUZA

na época deputado federal por São Paulo.
http://www.paulorenatosouza.com.br/
“ O objetivo principal do ENEM é
avaliar o quanto os jovens egressos
do ensino médio estão preparados
para o exercicio da cidadania e para os
passos futuros de suas vidas”

         Parte do sucesso do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), um programa de avaliação educacional de caráter voluntário que criamos há oito anos, pode ser ex¬plicada pelo fato de seus resultados complementarem o vestibular como critério para o ingresso no ensino superior. Certamente, a alta adesão dos alunos e das instituições universitárias - hoje mais de 500 partici¬pam do exame - também se explica por esse atrativo. Mas o ENEM não veio à luz com o fim exclusivo de criar mais uma porta para o acesso a universidades e facul¬dades, embora isso não seja antagônico ao seu objeti¬vo principal: avaliar em que medida os jovens egressos do ensino médio estão preparados para o exercicio da cidadania e para os passos futuros de suas vidas, sejam eles o ingresso no mercado de trabalho, em uma uni¬versidade ou em um curso profissionalizante.
Antes de tudo, o ENEM tem como meta avaliar o quanto foram desenvolvidas as habilidades e competên¬cias dos concluintes do ensino médio, associadas aos con¬teúdos disciplinares. Em outras palavras, o ENEM permite aferir se a educação básica, ao final do seu ciclo, cumpriu a sua missão principal, que na sociedade do conhecimen to é a de desenvolver a capacidade de pensar, raciodnar, criticar e aprender. Mostra, por exemplo, se os jovens são capazes de dominar linguagens, entender fenômenos naturais e sodais, solucionar problemas, construir argu¬mentos, aplicar os conhecimentos.
Ao mesmo tempo, serve como um instrumento de auto-avaliação para os egressos do ensino médio e mu¬nicia suas famílias para que verifiquem o quanto seus filhos estão preparados para a vida, para a continui¬dade do estudo, para a obtenção de um trabalho. É forçoso que se diga que o ENEM segue rigorosamente parâmetros adotados pelas nações do primeiro mundo, o que quer dizer que o jovem brasileiro que obtiver um bom desempenho está tão preparado para o futuro quanto um jovem europeu ou americano. Talvez isso explique o alto grau de interesse dos pais pelo desem¬penho de seus filhos no exame.
Devo confessar que meu objetivo principal ao criar o ENEM foi sinalizar para todos os sistemas educacio¬nais de nosso país quais eram os objetivos e parâme¬tros da reforma do ensino médio que acabávamos de conceituar. Ela redefiniu currículos e priorizou a in¬terdisciplinaridade e a aplicação prática dos conheci¬mentos. Correspondeu também às tendências interna¬cionais que ressaltam a necessidade da formação geral na educação básica.
Quando criamos o ENEM, levamos em consideração ainda os notáveis avanços verificados na ciência da pe¬dagogia e na área da avaliação educacional. Em síntese, as habilidades e competências avaliadas no ENEM têm referências internacionais e utilizam metodologias apro¬priadas. Como ocorre em outros países, o teste, que no Brasil tem características próprias, incita a recodificar o aprendizado conforme uma filosofia que busca forjar cidadãos com autonomia intelectual, moral e social, os quais estão aptos a vivenciar a democracia.
As competências priorizadas na avaliação dizem respeito ao dominio da lingua portuguesa, das lin¬guagens especificas das áreas matemática, artistica e cientifica; à aplicação de conceitos para a compreen¬são de fenômenos naturais, processos histórico-geo¬gráficos e manifestações artisticas. Os alunos também são avaliados quanto à sua capacidade de utilização de dados e informações para a tomada de decisões diante de situações-problema, assim como para a construção de argumentação consistente. Outra competência ava¬liada é a capacidade de elaboração de propostas de in¬tervenção na realidade, respeitando valores humanos e considerando a diversidade sociocultural do pais.
Hoje, o ENEM é uma unanimidade nacional, mas nem sempre foi assim. Quando o implantamos, enfrentamos enormes resistências. A ele se opuseram corporativismo e os que, por razões ideológicas, acu¬saram-nos de abrir, com a sua implantação, "as por tas para a privatização do ensino médio". Felizmente, esse tempo passou, e o MEC, no atual governo, utiliza os resultados do exame para a seleção dos alunos aten¬didos pelo Prouni. Isso é muito bom, porque fortalece o programa e a sua credibilidade, mas seus objetivos maiores não podem ser abandonados, se querémos as¬segurar um futuro digno para os nossos jovens.


• HAMILTON DE GODOY WIELEWICKI
professor do Departamento de Metodologia do Ensino
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutorando em Educação
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) .
hgw@smail.ufsm.br

"O papel central do ENEM
desloca-se,com o tempo,
de parâmetro de mensuração
de qual idade de ensino a mecanismo
de política de Estado para acesso
ao ensino superior"



Em educação, alguns temas têm uma propensão à con¬trovérsia, seja pelos antagonismos que suscitam ou pelo seu impacto na sociedade. O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), cabendo em ambas categorias, converte-se num exemplo prototípico de tema contro¬verso. Por um lado, antagoniza posições sobre avalia¬ção, financiamento da educação e políticas públicas e, por outro, pode impactar sensivelmente o acesso à educação superior - notadamente a privada - por parte de egressos da educação básica da rede pública. Assim, é prudente registrar o desejo de contribuir com uma discussão não-dogmática do ENEM, o que implica ponderar tanto sobre seus possíveis deméritos quanto sobre seus pretensos méritos.
Para começar, vale a pena lembrar que o ENEM, como instrumento padronizado nacional de avalia¬ção baseado numa matriz de competências, surge em 1998 com o objetivo de funcionar como parâmetro de mensuração de qualidade de ensino. Isso vai constituir razão suficientemente robusta para os ataques que so¬fre, seja pelos que questionam a ênfase avaliativa das políticas do governo que então o propunha, seja por aqueles que questionam (em distintas bases e graus de intensidade) as matrizes de competências e as visões de conhecimento que as sustentam.
Apesar de manter a mesma matriz conceitual desde sua origem, seu papel vai, com o tempo, ficando mais voltado para operar como mecanismo de política de es¬tado para acesso ao ensino superior. Assim, seu percur¬so existencial implica pelo menos duas constatações.
A primeira é a de que o ENEM, como um exame padronizado nacional, incorpora na sua gênese uma dificuldade ontológica de difícil equação: como ser padronizado, nacional e ainda assim dar conta das pe¬culiaridades dos processo de aprendizagem dos alunos? Quanto a isso, se presumirmos que o foco de preocupa¬ção do ENEM é deslocado daquilo que foi aprendido pelo aluno (típico dos exames vestibulares tradicionais) para o que ele consegue fazer com o que aprendeu, haveria, então, alguma possibilidade de desonerar o alunos (e a escola) da extensa lista de "conteúdos", cujo sentido lhes é muitas vezes obscuro, abrindo margem, com isso, para que a escola volte sua atenção para os sentidos que ela têm no contexto em que se insere .
A segunda constatação é que pouco se tem discuti¬do sobre o significado dos resultados do ENEM. Em re¬lação a isso, um primeiro aspecto a salientar é que em 2006, praticamente três em cada quatro estudantes que se submeteram ao ENEM o fizeram na expectativa de conseguir uma vaga no ensino superior. Tal expec¬tativa, por sua vez, pode estimular as escolas de edu¬cação básica a pensarem sobre o papel que têm tido (ou não) no desempenho de seus egressos no exame e, por conseguinte, gerar aquilo que a literatura sobre avaliação chama de efeito retroativo sobre o ensino especialmente pela perspectiva de conquista de va¬gas no ensino superior da rede privada - uma legião crescente de alunos de escolas públicas, o que confi¬gura mais uma situação paradoxal, isto é, um exame público que oferece aos egressos do sistema público de educação básica vagas na rede privada do ensino superior, enquanto as vagas do sistema público de en¬sino continuam sendo ocupadas majoritariamente pe¬los egressos da educação básica do sistema privado.
Um Outro aspecto que a discussão sobre o ENEM suscita é que, se há um relativo consenso (quiçá ina¬dequado) de que a educação básica do sistema públi¬co oferece menor qualidade do que aquela oferecida pelas escolas privadas, a busca desenfreada pelas va¬gas nas universidades públicas soa um tanto parado¬xal, ainda mais num cenário (ainda recente) de forte reação às políticas afirmativas empreendidas por tais universidades. Assim, questionar a validade do ENEM como mecanismo de acesso a ensino superior de certo modo escamoteia a discussão central, qual seja, o fato de que mais do que pensar em mecanismos de restri¬ção é fundamental pensar (e construir) mecanismos de ampliação efetiva de acesso.
Nesse particular há, no entanto, um dado sobre o perfil dos participantes do ENEM que merece cuidadosa consideração. Os pais de cerca de 60% desses jovens se¬quer concluíram o ensino fundamental e mais da metade se auto declaram negros ou pardos, o que pode indicar um fenômeno sociologicamente relevante, na medida em que talvez estejamos diante de uma perspectiva de mudança de um quadro que é perverso inclusive quan¬to à persistência intergeracional do analfabetismo e da baixa escolaridade. Visto sob esse prisma, o maior méri¬to do ENEM pode estar naquilo que ele pode tornar-se ¬um mecanismo de mudança social - do que o conjunto de controvérsias que ele consegue ser.
Em função disso, e levando em conta o caráter não-disciplinar (ou interdisciplinar) do ENEM, a sinalização enviada para a escola é a de um modelo de organização de conhecimento que, se não abala as rígidas estruturas estanques das disciplinas escolares, ao menos aponta para a necessidade de um planejar e de um agir um pouco mais integrados.
Apesar das críticas aos modelos baseados numa matriz de competências, há cada vez menos dúvidas de que o modelo de memorização enciclopédica de conhecimento - característico da maioria dos exames vestibulares tradicionais - pode não ser a medida mais adequada para selecionar os estudantes pretensamen¬te mais aptos a ingressar na educação superior. Curio¬samente, entretanto, poucas universidades públicas têm incorporado em seus processos seletivos uma lógi¬ca menos propensa a premiar os dotes mnemônicos de seus candidatos, em detrimento da sua capacidade de estabelecer relações mais significativas entre os con¬teúdos aprendidos e sua vida.
Além disso, como tema cercado de controvérsia, não se pode deixar de mencionar que o ENEM atrai .





Como Fica O ENEM ?


E agora?


Continua confiável ?
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